- E qual o prognostico desta doença? - Eu perguntei à médica.
- Bem, ela vai viver até os dezoito anos - Disse-me a medica e vidente na frente de minha filha e esposa.
Inconformado com o diagnostico eu pesquisei na Internet, que estava em seus primórdios e percebi que minha filha não tinha nenhum sinal característico daquela doença e encontrei e entrei em contato com uma especialista em Nova Iorque, a qual me pediu amostras do sangue dela para análise. Algum tempo depois de enviado o material veio o veredicto: não era anemia de Fanconi. A médica vidente errou e aprendi que, às vezes um médico irresponsável quando não mata um paciente de fato pode matá-lo de susto.
Tirando esta anomalia de contagem de plaquetas baixas, minha filha tinha uma vida normal e lembro-me que, todas as tardes, ela me esperava, para as nossas tradicionais cem voltas na piscina, coisa que ela sempre conseguia e eu não.
Certa noite eu estava em meu computador pesquisando na net e uma súbita idéia me ocorreu e no mesmo instante fiz um projeto de uma página para a diretoria da empresa que eu trabalhava, para que eu morasse dois anos nos Estados Unidos para desenvolver novos negócios e produtos dali. Apresentei o projeto à diretoria da empresa, que pediu um tempo para decidir. Aquela idéia repentina, de fato, não teve nada a ver com o problema de minha filha, pois nesta época ele permanecia hibernado, pois ela tinha uma vida normalíssima.
O tempo foi passando e eu nem lembrava mais daquele projeto, que era incomun, até que um dia meu celular tocou e uma colega de trabalho, Eleni Silva, disse-me, que tomou conhecimento do meu projeto e conversando com a diretoria da CTBC, ela os convenceu que minha ida para os EUA seria benéfica para empresa e que além disto eu teria a oportunidade de avaliar junto aos médicos americanos esta anomalia da Kelly. O nome desta empresa é CTBC, que pertence ao Grupo Algar e que sempre figurou entre as melhores empresas para se trabalhar no Brasil
Já temos aí dois fatos isolados e insólitos: o primeiro meu súbito pensamento de desenvolver os projetos, direto dos EUA e o segundo a intervenção da Eleni, que era uma colega de outra área e que eu tinha pouco contato. Hoje acredito que foram coisas orientadas por alguma força maior que já mencionei num outro artigo: Mas quem é este que caminha ao seu lado?
Curiosamente, dois anos antes deste fato, eu havia ficado em Reston, na Virginia próximo a Washington por três meses, num treinamento na Sprint. E assim que houve a decisão de minha transferência entrei em contato com a médica de Nova Iorque para me sugerir um local que eu também pudesse investigar o problema da Kelly. E ela disse, só há um, o NIH de Washington, O Instituto Nacional de Saúde, um dos centros mais avançados do mundo em pesquisas médicas.
Já estamos na terceira coincidência, pois isto nos facilitou tremendamente nossa mudança para um novo país, já que era um lugar bastante conhecido. Isto foi no final de 1997 quando mudamos para uma cidadezinha Rockville, a trinta minutos do NIH.
Alí ela foi submetida a todos exames possíveis, e nada foi diagnosticado, exceto a evidente aplasia medular, o que significa que sua medula óssea era hipocelular e portanto produzia poucas células sanguíneos e a medida que ela ia crescendo, seus números de plaquetas, glóbulos vermelhos e brancos ficavam abaixo do limite mínimo da normalidade. Mas com um remédio fornecido pelo NIH, seu exame de sangue logo se normalizou, menos as plaquetas, mas estas ainda estavam numa quantidade satisfatória.
Lembro-me de uma conversa com o médico do NIH, um dia antes de nossa partida dos EUA em dezembro de 1999. Perguntei a ele:
- Em sua opinião quanto tempo este remédio vai funcionar ainda?
- O que temos verificado é que podemos estimular a medula por até quatro anos mas a partir daí ela chega a exaustão e tende a falir rapidamente.
- E então, quando isto acontecer o que faremos? - eu perguntei
- Infelizmente pouca coisa, podemos tentar um transplante, ela já está cadastrada no nosso banco, mas é preferível que ela encontre um doador brasileiro, pois transplantes com doadores de etnias diferentes são ainda mais problemáticos. E o melhor para ela, é que ela faça o transplante no Hospital das Clínicas de Curitiba, um centro de excelência mundial nesta área – Respondeu-me ele.
Foi uma notícia dura, Kelly estava junto e naquela época os transplantes eram ainda mais traumáticos que hoje e aquele dia foi muito difícil, mas lembro-me de uma conversa com minha esposa. Naqueles dias havia morrido o Luis Eduardo Magalhães Filho, que estava sendo preparado para ser o próximo presidente do Brasil. Uma simples corrida matinal, um enfarto fulminante e uma vida se foi. Então eu percebi que vida era imprevisível, era o caos total e que o ser humano não tinha o menor controle sobre seu futuro. Então tudo se tornou mais fácil, pois o melhor da vida é a incerteza do amanhã pois um futuro previsível é algo assustador.
Kelly, como tudo em sua vida, estava destinada a nos surpreender. Ela conseguiu com sua força e fé, fazer com que sua medula continuasse produzindo por mais de dez anos, após aquela conversa com o médico do NIH, um bonus extra de seis anos. E então no início deste ano, tomamos a decisão mais difícil em nossas vidas e na vida dela principalmente. Em uma visita ao HC de Curutiba em maio deste ano, após a Dra. Carmen explicar pacientemente para Kelly os riscos e benefícios do transplante, Kelly decidiu fazê-lo o mais breve possível e para sua sorte, eles encontraram vários doadores 100% compatíveis para ela e puderam se darem ao luxo de escolher o mais adequado.
A quarta e incrível coincidência, na hora certa o doador estava disponível, mais do que isto, havia mais de uma doador. Estes heróis anônimos, que nunca saberemos suas identidades, mas que são heróis, justamente por salvarem outras vidas. E não há realização maior para um ser humano: poder salvar a vida de alguém ou de várias pessoas.
O transplante aconteceu em oito de julho deste ano e no artigo Torrente de emocoes eu fiz a descrição daquele que foi o dia mais difícil de nossas vidas.
Felizmente tudo ocorreu bem com a Kelly, mas neste período tivemos a tristeza de saber de alguns transplantados que não resistiram. Algumas pessoas sequer chegaram ao transplante, perderam suas vidas antes, pois doadores compatíveis não foram identificados a tempo.
Infelizmente, doadores de medula ainda são poucos no Brasil e na verdade isto é uma garantia para todos nós, pois a cada 100 mil pessoas, apenas uma será compatível com você e como eu disse, a vida é imprevisível e o transplante de medula se tornou a salvação para muitas doenças: leucemias, hepatites anemias congênitas e adquiridas e outras. Até mesmo um relato de aids eu vi, ser curado com o transplante. Uma colega de quarto de milha filha, adquiriu uma anemia aplástica por manusear produtos de tintura de cabelo, no salão de beleza em que trabalhava. Na verdade qualquer produto feito a base de derivados de petróleo pode causar anemia aplastica, assim como inseticidas, herbicidas e até remédios. A tradicional aspirina é um supressor de medula, embora não haja comprovação que ela cause anemia aplástica. Mas o fato é que, um paciente com anemia, jamais pode tomar uma aspirina.
Seus dados ficam armazenados num banco de dados do Redome e quando você é identificado 100% compatível com algum paciente a ser transplantado, eles te contatam para verificar se você está apto e ainda quer fazer a doação, que consiste na retirada de alguns ml de sua medula óssea, normalmente uma punção feita na região da bacia.
Atualmente são realizados muitos transplantes com cordões umbilicais, que na maioria dos países são coletados tão logo cada criança nasça. No Brasil os cordões umbilicais ainda na sua maioria, viram lixo hospitalar. Na realidade, vidas estão sendo atiradas ao lixo, pois alguém pode estar morrendo por falta de um cordão daquele que contém as células-tronco, que conseguem se reproduzir, duplicar-se, gerar outras células com iguais características e diferenciar-se, ou seja, transformar-se em diversas outras células de seus respectivos tecidos e órgãos. Assim as células daquele simples cordão umbilical, após serem injetadas na veia do paciente, vão caminhado até se alojarem no interior dos ossos do paciente e ali se reinicia o milagre da diferenciação, elas por algum mistério, da natureza, começam a produzir plaquetas, glóbulos brancos e vermelhos e uma nova vida se inicia.
Morremos uma vez só, mas um transplantado de medula óssea nasce duas vezes. Minha filha agora tem cem dias de uma nova vida e daqui um ano vai tomar todas aquelas vacinas que tomamos quando somos crianças.
E o milagre de um transplante é algo maravilhoso. Minha filha nos últimos meses antes do transplante já se cansava facilmente, e não podia mais fazer muitas atividades que gostava, como dançar, rapel, etc.
E exatamente um mês após a infusão de sua nova medula eu saia para caminhar com ela pelas rua de Curitiba, e ela simplesmente me deixava para trás nas ladeiras íngremes perto do estádio do Curitiba onde ela está morando ainda. Achava aquilo um milagre formidável e ficava feliz por ser largado para trás por minha filha.
Para que ela se distraísse nos dias que ficou internada, eu criei um blog para ela que acabou se tornando popular pois ela se comunica muito bem e está desenvolvendo um trabalho atualmente, com o objetivo de ajudar futuros transplantados e conscientizar as pessoas para a necessidade da doação. Foi descoberta, através do seu blog por duas emissoras afiliadas da rede globo que já a entrevistaram, uma de Uberlândia outra de Curitiba.